Por um fio: lidar com a Tricotilomania não precisa ser solitário; conheça a história de Tati Oshiro
Administradora de empresas compartilha com Tudo Pra Cabelo como ela lida com o transtorno de arrancar os cabelos sem nem perceber desde os 9 anos. Vem se inspirar na história dela!
Lidar com um transtorno psicológico nunca é fácil. E pode ser ainda pior quando essa condição afeta a sua aparência e fica exposta para quem quer que te veja. Esse é o caso da Tricotilomania, transtorno em que a pessoa, sem perceber, arranca os próprios cabelos ou pelos pelo corpo.
Foi esse o diagnóstico que Tatiane Oshiro, administradora de empresas de 36 anos, conta recebeu e com o qual vem convivendo desde os 9 anos de idade.
A Tati bateu um papo com Tudo Pra Cabelo para contar como é conviver com essa condição e inspirar pessoas que estão passando por isso a falarem sobre o assunto.
“Poucos falam sobre o assunto e, menos ainda, procuram ajuda”. A história de Tati Oshiro com a Tricotilomania
Em julho de 2019, raspei minha cabeça na zero, pela primeira vez. Cheguei em casa e sentei em frente de minha mãe, vestindo um capuz preto na cabeça, disse a ela: “Fiz uma coisa muito importante para mim, mas sei que você não vai gostar”. Retiro o capuz para mostrar a cabeça raspada.
Ao que ela me responde: “Não acredito que você fez isso”! Coloca uma das mãos na testa e fecha os olhos. Triste, minha mãe não entende e pergunta por que.
“Já estava careca, mãe!”, respondo. Ao que ela replica: “Mas ainda dava para esconder”.
Para as expectativas de uma filha que deseja receber apoio da mãe em um momento desafiador na vida, essa reação foi longe da ideal. Mas foi essa reação que eu recebi, e me levou algum tempo para compreender o real desafio de expor nossas verdades desconfortáveis para o mundo.
O motivo que me deixou careca, a maioria das pessoas nunca ouviu falar. Este segredo eu escondi de amigos e família por mais de vinte anos. Você imagina como é viver procurando meios de esconder a própria verdade?
A verdade é que eu tenho Tricotilomania, uma doença do espectro TOC – os transtornos obsessivos compulsivos. Para pessoas com Trico, arrancar os cabelos (ou outros fios do próprio corpo), é automático e irresistível. Você já ouviu falar de alguém que arranca os próprios cabelos sem perceber? É estranho!
Isso é o que eu pensava, quando era uma menina de 9 anos e comecei a me dar conta dos fios espalhados pelo chão do quarto. Fios de cabelo que eu mesma arrancava, sem controle.
Eu arrancava em casa, assistindo TV ou estudando. E arrancava na escola, distraída. Ou no ônibus e também no carro. Mesmo sem saber porque eu fazia aquilo, algo me dizia que não era normal e talvez fosse melhor que ninguém soubesse.
Assim eu dei inicio a uma jornada solitária – o que não poderia estar mais longe da verdade já que 3 em cada 100 pessoas no mundo tem Tricotilomania.
E considerando a sociedade baseada em normas de beleza como vivemos, talvez essa estimativa declarada esteja incorreta e a comunidade seja ainda maior. Mesmo assim, muitos de nós acreditam que estão sozinho. Por vergonha do que os outros vão pensar, a gente se esconde. Poucos falam sobre o assunto e, menos ainda, procuram ajuda.
A primeira vez que eu procurei ajuda foi aos 18 anos, quando o “doutor Google” me deu ciência dos fatos. Tricotilomania faz parte de uma variedade de Comportamentos Repetitivos Focados no Corpo, CRFC – como roer unhas ou cutucar a pele, compulsivamente, apesar da dor ou lesão.
Uma em cada 20 pessoas tem alguma compulsão focada no corpo – são as doenças mais comuns que você nunca ouviu falar. A Tricotilomania é caracterizada pelo desejo compulsivo de arrancar os próprios cabelos, levando à calvície notável e a uma vida inteira afetada pelo distúrbio.
Nos 10 anos que se seguiram para mim, eu tentei diferentes remédios psiquiátricos e investi muita grana em consultas médicas caras, na busca de respostas ou, pelo menos, um direcionamento para controlar minhas próprias mãos. Nenhum tratamento médico funcionou para mim e a falta de controle minou minha autoestima e amor próprio.
Mas eu tive sorte! Somente aos 27 anos, as falhas na cabeça começaram a saltar aos olhos dos outros e trouxeram as perguntas básicas que eu detestava responder: “O que aconteceu com seu cabelo, Tati?” “Porque você não para?”
Eu não sabia responder a estas perguntas! E queria muito que fosse uma escolha.
Passei os anos seguintes testando maquiagens para a cabeça, extensão de cabelo e acessórios que me ajudavam a esconder a verdade. Tão curioso quanto a vida pode ser ser, a tentativa de manter minhas próprias mentiras e, ao mesmo tempo, ir em busca de verdades, me colocava em um estado de angústia interna que só crescia. Sem respostas, eu arrancava mais cabelos, descontroladamente. Sem saber, eu mesma jogava a gasolina na fogueira.
Aos 33, ficou impossível esconder o estrago, mesmo com peruca e maquiagem. O estranho desejo pela dor e o hábito das mãos se misturavam dentro de mim. Decidi raspar a cabeça com a segurança de quem marca o horário na cabeleireira com um mês de antecedência, caso queira desistir da ideia.
Na busca por respostas, e sem esperanças em remédios, me debrucei sobre livros e conhecimentos que pudessem ir além da medicina moderna, e trazer algum fio de esperança, depois de tantos fios perdidos.
Aprendi que a Tricotilomania é observada na humanidade há muito tempo – um mecanismo inconsciente para lidar com o estresse da vida, e pode ser desencadeado por eventos graves, como traumas (como foi meu caso), ou eventos triviais, tão triviais quanto a solidão e o tédio.
Algumas pessoas buscam pelo álcool ou cigarro, secretamente de suas famílias, enquanto outras, na tentativa iludida de aliviar a angústia da própria existência, se perdem no transe de arrancar os próprios cabelos. Nada disso tem sentido lógico!
Em minha experiência pessoal, a mentira era o que mais incomodava. Não saber como dizer a verdade me privou de momentos tão simples quanto tomar banho de piscina e me divertir junto aos amigos porque a água revela as falhas do cabelo.”
Não saber como dizer a verdade me fez mudar de cabeleireira muitas vezes porque a cada vez que eu era questionada sobre as falhas na cabeça, eu inventava uma mentira. Nem sempre a mesma mentira. E eu me perdia sobre qual mentira havia contado para qual cabeleireira.
Não saber como dizer a verdade me conduziu por um caminho de dúvidas sobre quem eu sou, em níveis mais profundos que o cabelo, simplesmente. E muitas vezes a gente não precisa encarar a verdade. Quando temos um problema persistente que podemos silenciosamente varrer para debaixo do tapete, buscamos por soluções rápidas.
Raspar a cabeça por um ano não foi uma solução rápida, mas de alguma forma me ajudou a frear o habito das mãos. Outro dia, decidi descolorir minha careca com agua oxigenada, na pia do banheiro. Terminei a brincadeira parecendo o Eminem (rapper estadunidense).
Na verdade, ficou tão horrível que eu adorei, estranhamente! Pela primeira vez em anos, foi divertido mexer com meus cabelos. Pode parecer bobo, mas isso promoveu um profundo impacto em mim – de repente, eu podia me divertir.
E me aprofundei em estudos sobre o comportamento humano. Pude experimentar novos arranjos de hábitos funcionais que nos ajudam a lidar com o estresse da vida, de um jeito saudável. Para minha surpresa (só que não), foram as pequenas mudanças sobre coisas simples que trouxeram maior resultado:
- Exercício físico;
- Exercício mental;
- Espiritualidade;
- Alimentação;
- Descanso.
Coisas simples, mas que não são fáceis.
Hoje, aos 36, eu não deixei de arrancar completamente e talvez seja uma compulsão que vou lidar para o resto da vida. Embora meu cabelo tenha voltado a crescer e eu adore os cachos, isso é apenas a ponta de um iceberg.
Na medida em que eu me abri para dizer a verdade quando fosse preciso, mais amigos verdadeiros eu fiz e meus relacionamentos melhoraram também. Para uma pessoa com Trico, o mínimo de controle ganho sobre a compulsão pode, além de reestabelecer os cabelos, reestabelecer também a confiança em si mesma.
E cada vez que me percebo perdida em fios de cabelo soltos pela casa, sei que estou fora do meu centro. É o sinal que preciso parar e me olhar com mais carinho.
A Tricotilomania deixou de ser a mensagem, e passou a ser o mensageiro, o alerta de que alguma coisa em minha vida está fora de equilíbrio e há mudanças a fazer. Em uma série de acontecimentos recentes, minha mãe fez a passagem desta vida. Mas não antes de ver meus cachos crescerem novamente 🙂
Em algum lugar de nós, cada uma à sua maneira, minha mãe e eu ganhamos alguma consciência sobre os desafios e poderes da verdade, por mais feia que ela pareça. E para que as pessoas se sintam livres para dizer a verdade, é importante que a gente comece a aceitar uns aos outros também por nossas imperfeições.
Se não fosse pela aceitação das pessoas perto de mim, eu nunca teria deixado de me esconder, e continuaria me sentindo sozinha. Uma em cada 20 pessoas tem alguma compulsão focada no corpo. Se não é você, pode ser alguém perto e talvez você nem saiba disso porque elas se esforçam para parecer normal.
Quando você encontrar uma pessoa assim, deixe ela saber que não há problema em lutar contra algo, mas ela não precisa lutar sozinha. Eu não vou desistir!